Lisboa, 2021
Tenho vivido o teatro através dos meandros mais poluídos, mais erráticos, sempre nas bordas da institucionalidade.
Depois de terminada a licenciatura na ESTC completei o tirocínio da minha educação, como artista e como vertebrada, a servir galões ou mojitos nos estabelecimentos menos afamados da capital.
Estes olhinhos que a terra há-de comer, ainda que míopes, já pousaram em algum mundo. Desde fazer teatrinhos de rua em terras eslavas, sob um inverno rigoroso, à cata de uns trocos para acompanhar os cirróticos de que me rodeei aos subterrâneos de Bratislava, a dar por mim tropeçada na Primavera Árabe egípcia, em terraços suburbanos do Cairo entre galinhas, cabras e o som dos tiros do levante em curso. Palmei as ruas lamacentas dos bairros de Maputo a dar aulas de teatro e fui introduzida nas linguagens mais sanguíneas dos teatreiros libertários do Rio Grande do Sul.
Por cá fui fazendo algumas peças de minha autoria à margem dos biscates remunerados, com as gentes que se solidarizavam com esta forma fortuita de produzir teatro, embora ao ritmo ruminante que os bolsos vazios impõem.
Com este bando de gentes foi-se consolidando um estilo e uma equipa. Em parceria com João Melo vindo do cinema, e em colaboração contínua com José Smith Vargas, Bernardo Álvares, Manuel Bivar, Luísa Homem e mais recentemente com Raphael Soares, Faia Supico e João Ayton temos, nos últimos anos, tentado pensar socialmente a vida e a cultura, despertos para a clarividência de que a nossa condição assim o exige. A solidão a nós não nos privilegia.
Sem ter sido muitas vezes bafejada pelos apanágios do mecenato cultural não sobejam no meu currículo nomes balofos nem épicos feitos nos meios oficiais das ditas lides artísticas. Abrigo no entanto a convicção de que este grupo está genuinamente empenhado em produzir pensamento crítico sobre o mundo através de uma cultura mais acessível e menos apelintrada e piegas politicamente. E assim, quixotescamente, temos vindo a aprimorar-nos nos meandros das artes a que, para mal dos nossos pecados, decidimos dedicar-nos.
Neste tempo de Ubus gostaríamos de aproveitar, enquanto o sangue ainda é inflamável, para o desperdiçar no teatro. É tudo.
Com agradecimentos pela vossa atenção;
Andreia Farinha